O orfanato em que estamos como voluntários, o BFCH (Brighter Future Children’s Home), existe desde 2004 e é gerido pelo ONG nepalesa VSN (Volunteer Service in Nepal). Esta ONG foi criada para oferecer ajuda e apoio às comunidades carentes durante o período de turbulência devido à insurgência maoísta, que se estendeu entre 1995 e 2006.  Como frequentemente ocorre em casos de guerra civil, as principais vítimas do conflito foram as crianças. Muitas ficaram órfãs, foram afastadas das famílias ou deixadas em extrema pobreza. Outras foram recrutadas para o exército maoísta, forçadas a trabalhar e, no caso de muitas meninas, vendidas ou traficadas para o comércio do sexo. Diante deste cenário, a VSN resolveu focar seu trabalho nas crianças e começou a ajudar orfanatos que já existiam no Nepal. Ao acompanhar estes orfanatos ficaram descontentes com a maneira como eles eram geridos e com o modo como as crianças estavam sendo educadas. Concluíram que a melhor maneira de cuidar de crianças era construir e manter seus próprios orfanatos. Hoje a VSN possui o orfanato BFCH com 15 crianças e o orfanato SSCH (Shining Stars Children’s Home) com 26 crianças. Ambos mantém programas de voluntariado; para quem tem interesse vale visitar o site da VSN.
O orfanato BFCH recebeu crianças de diversas origens. Algumas vieram dos orfanatos que a VSN já ajudava, outras foram recolhidas das ruas ou entregues pelos familiares. Nem todos são órfãos, alguns foram abandonados por mães sozinhas extremamente pobres e sem condições de mantê-los. Outros foram traficados para Kathmandu na época da guerra civil. Nos casos em que algum familiar é conhecido a VSN promove o contato para que as relações sejam mantidas. (Para quem tem interesse em entender um pouco melhor o que aconteceu com as crianças do Nepal durante sua guerra civil recomendo o livro Little Princes, do Conor Grennan. Infelizmente ainda não há versão em português.)
Desde nossa chegada que a organização e profissionalismo do orfanato BFCH nos surpreenderam. Esta é nossa primeira experiência como voluntários e não sabíamos muito o que esperar. O local foi super bem planejado para as crianças com deficiência: é uma casa única, térrea, com quartos e banheiros separados para meninas e meninos e uma sala de jantar e de estudo/jogos, tudo rodeado por um grande jardim e cercado por grades. O local é limpo, arejado e arrumado. A casa tem um gerente, o Jaggu, que supervisiona o dia-a-dia e auxilia as crianças em seus estudos. Ele mora com sua família na vila de Bistachhap (onde estamos morando) mas vai todos os dias ao BFCH. Morando na casa tem a Sita Didi, que cozinha, mantém a horta e cuida de todos, é a figura da “mãe”.

As crianças e adolescentes são super disciplinados, arrumados e entrosados. Cada um tem que lavar suas roupas e suas louças e eles se revezam para limpar quartos, banheiros e áreas comuns.

As regras da casa são sempre seguidas:
– Ser respeitoso: ouvir Didi e Dai e obedecer quando pedirem para cuidar de seus pertences
– Não sair de casa sem permissão
– Não brigar, chutar ou bater
– Fazer suas tarefas
– Não  falar palavrão
– Não brincar enquanto não terminar lição de casa
– Não mentir
– Manter higiene: escovar os dentes duas vezes por dia; lavar as mãos, rosto e pés antes e depois de comer e usar o banheiro; banho pelo menos duas vezes por semana; usar sabonete
– Não usar sapatos em nenhuma sala
– Não desperdiçar água
– Nenhum alimento é permitido nos quartos
– Manter a casa limpa e arrumada
– Não entrar no escritório, enfermaria, quarto da Didi e quarto dos voluntários
– Devolver brinquedos e equipamentos esportivos quando tiver terminado de usá-los
Todos tiveram começos de vida muito difíceis mas receberam muito carinho, cuidado e educação desde que chegaram ao BFCH. Hoje vivem como uma grande família e fiquei muito tocada em ver como um cuida do outro. Os mais velhos atuam como “pais” dos mais novos. As meninas são super carinhosas, se abraçam, vivem juntas e cuidam muito da Cheena (uma menina com Síndrome de Down que chegou ao orfanato no último mês).



Os dois meninos com Síndrome de Down estão no BFCH desde sua fundação em 2004. Foram bastante estimulados desde pequenos e tratados da mesma forma que as demais crianças. Desta forma são bastante independentes e capazes de fazer as mesmas tarefas que os demais. O Raju, que consegue se comunicar e é super esperto, sempre ajuda o Krishna, que não se comunica, a lavar suas roupas, tomar banho, etc. É muito legal ver ele mandando o Krishna colocar casaco no fim de tarde porque esfriou.

Quando as crianças não estão fazendo suas tarefas da escola ou obrigações da casa estão brincando, afinal criança deve brincar! A casa tem uma mesa de ping pong que é disputadíssima. Tem sempre uma dupla jogando e outros na espera. O gramado também é bem utilizado para brincadeiras, tipo queimada. Energia é o que não falta aos menores.


Perto da BFCH há um campo de futebol construído por voluntários da VSN. De vez em quando eles organizam jogos com as crianças dos dois orfanatos e é uma festa só. Nós participamos de um destes dias e o Danilo virou juiz.




Poderia escrever bastante sobre as crianças pois são todos muito especiais mas vou falar sobre o Krishna. Como contei o Krishna tem Síndrome de Down e não consegue se comunicar pela fala. Mas os olhinhos e o sorriso dele conseguem expressar tudo.

Ele é bastante preguiçoso e capaz de ficar horas deitado na cama sem fazer nada. Não demanda atenção então acaba sendo “esquecido” pelos outros e fica sozinho no seu mundo. Mas é só ir chamá-lo que ele vem todo feliz. Ele adora quando alguém resolve interagir com ele e se diverte batendo palmas, imitando nossos gestos e tentando repetir algumas palavras.

Quando começa a fazer algo pode seguir fazendo o mesmo por horas. Cada vez que vai escovar dentes fica ao menos uns 10 minutos passando a escova para lá e para cá. Toda vez que eu começava a bater palmas com ele tinha que inventar outra brincadeira quando minhas mãos já estavam ardendo. No dia em que coloquei música para ele e o Raju dançarem, tive que fingir que acabou a bateria depois de vê-lo todo suado sem a menor intenção de parar. Outro momento impagável foi quando teve jogo de futebol das crianças e demos um “pompom” para ele torcer. O que ele se divertiu não dá para descrever. Sem falar de sua alegria quando colocamos ele para jogar ping pong.

Nestas últimas duas semanas passei muitas horas brincando com Krishna e posso dizer que fiquei encantada com toda a sua meiguice e alegria. Dar tchau vai ser muito dolorido e vou sentir muita falta do seu sorriso, ele sorri com a boca e com os olhos. O único consolo é pensar que vou sentir mais saudades dele do que ele de mim!